14 de ago. de 2012

Anos mais tarde, notou na capilaridade grisalha de seu ventre, a insistência negra de um fio. Trazia em seu comprimento todo o vigor áureo da juventude. Deteve-se num pasmo; examinou com perícia aquele fio, despercebido pela incauteza do tempo. Tocou-o com as trêmulas pinças das unhas, sem saber ao certo o que era aquela sua curiosidade ante o ínfimo. Havia uma discrepância não só na negrura sedosa daquele pêlo, mas também em seu crescimento anelado. Emaranhado em suas crespas entranhas, o fizera lembrar das míticas serpentes originais que puseram os homens a se perder no movimento labiríntico seus anseios. Suas pinças, agora, não tremiam dúvida alguma: Aquele resquício de cabelo serpenteado, tinha uma existência feminina. Desvencilhado de toda culpa e esquecimento, entendeu que tal laço era a prova inequívoca do amor. Reencontrou nas desertas fissuras da face, as rotas de um antigo sorriso, que logo molharam; que mais além, ruiu a rouquidão sonora de uma língua egressa do exílio: "Renata. renata!"  

22 de fev. de 2012

Orquídeas brancas lembravam a vida.
Inteiras, exatamente ali, na borda dura e marrom da árvore.
Assistiam com curiosidade gêmea meu pasmar curioso a cerca delas.
Cândidas, com um miolinho amarelo.
Vivas na forma e no balançar cuidadoso do vento.
Esguias, como que em sua existência vegetal, esticasse um pescoço agudo no lugar do  fino caule. Ansiavam ver todo o interior do café. mesas, pessoas, livros, cheiros... enfim. E, esquecida de si com as outras de sua companhia, talvez nem percebeu. nas pétalas de sua melhor roupa, furtara a atenção da tarde...

3 de fev. de 2012

"... e, contudo, se ainda restasse algo de definido, não daria nome. A mim, valeria mais a sensação furtiva da vontade. Soltas aspirações confusas entre o vapor que me saía e o que restava no embaço das janelas. Concluí as forças. Serenei macio. No limiar entreaberto da boca, escorria o visco de adormecidas palavras. Fui muito antigo e nem me dei conta. Estive animal e sempre soube..."

1 de fev. de 2012

Não raro, e por ser espesso, parecia que os pelos de meu corpo configuravam na boca loba da noite uma existência anônima. Estrangeira a mim mesmo. Ocasionalmente ainda, sugavam as seivas até acobertar sentidos,  voz, fomes. Rugiam seu serpentino rastejar. Crespavam meus lisos polimentos de gente. Me irmanavam com a noite e seu semeado brilho. Agora, estou muito próximo ao chão. É o faro. O farol da hora mais escura da madrugada. Toda a casa dá-se em silêncio como se ali passasse um santo. Talvez fosse. Soltei o bafo jocoso e bastei num costume quadrúpede. Desde cedo soube:ele crescia capilar. Havia um cão atrás de mim.

30 de jan. de 2012

Me faça um favor;
quando se for
não esqueça a saudade num copo
sobre a mesa.
Não tire nada do lugar.
Não arrume.
Não deixe a casa vazia.
Quero o tropeço das lembranças
espalhadas por aí.
Talvez eu lhe encontre assim,
nas frestas
da noite passada,
na chuva corrida lá fora.
Em tudo o que eu não dormia
Me faça um favor,
quando for embora,
sem mais demora,
deixe que me acordem as horas,
Mas não apague a luz
do dia.

29 de jan. de 2012

A algazarra sonora dos pássaros escorrera janela adentro. Pela pele, ondulou rítmicas frescuras respirando todo o quarto. Fazia voltas e penetrava a intimidade da cama. Amavam-se ludicamente. Vergonha alguma cobria a nudez ativa do lençol e do vento. Soube secretamente: os objetos, ausentes de nosso peso, cheiro e suor se recolhem numa intimidade em nada grave. Levitam indiferentes a certos nomes, manias que a eles domesticamos. Invejei o amor das coisas. Dei por aprisionar nas celas pulmonares tudo que conseguia inspirar da brisa. Cócegas, mariposas, ou, num golpe de sorte, asas. Arfei. O excesso de ar tirou-me o fôlego. Percebi que uma gravidade gélida se enraizava e tomava a forma contorcida dos pés. Estava par a par com o chão. O vento cessara. Macerei a doçura de outro damasco, sorvi o vinho. Intimamente sabia: era vital respirar novamente. Inspiração.

24 de jan. de 2012

Pensei o que sobra de nosso no interior dos anos. Consegui juntar apenas um punhado da cidade, a qual passara tantas vezes de menino, até agora. Toda carregada em cor, tempo fresco, passos entardecidos. Nada mais lembrei. E mais amiúde, quase nada senti. O calor das coisas específicas (rostos familiares, fatos marcantes e mesmo eu infantilizado), trazia um fôlego escasso e enfadonho. Caminhei minha incólume presença nas pessoas, cheiros e de lá sumi aos poucos. Escuro. Vazio. Corpo sem volume algum. E sei; o lume que guiava os olhos até o chão, também cegava se bem quisesse mirar risos, flertes, vozes espirradas nas paredes. Tive fé; era eu o desatino em pé aos pés da tarde. Em cada passo segui a segurança de já saber os lugares e seus atributos. Marginal de tudo. Anônimo. Inominado. À noite, o mel lembrara o que já era tarde: Nuvens caíam sem tocar os chãos. Pássaros sumiam sem mais onde.

16 de jan. de 2012

A pupila saltava ante o espetáculo promíscuo das cores. Sua pele movediça, harmonizara em claves de sol todo o repertório cromático da manhã. Um ócio orquestrado em cada respiração, toque, olhar unia todos os tempos num silêncio cúmplice e dissimulado capaz de romper a dormência dos corpos ao mais débil sinal. Na cisma de prolongar(ou parar) o relógio balbuciamos promessas...
Vinícolas na Itália?!
Um dia, um dia...

13 de jan. de 2012

A cama. Escombro invariável e mal resolvido da manhã. 
Triste destino do lugar. Nem cheio. Nem vazio. Inércia dos lençóis ao corpo (completava a extensão daquele lugar incompreensível). De que memória é feita uma espera? e era assombroso, toda a casa: um fantasma amanhecido.
Exariu-me até a demência. Até a falência de todos os meus ossos e carnes. De vivo, só a automação orgânica de intestino, rins, vísceras. Heranças da espécie. De resto, nada além do que expelia: suor, gosmas, alma...
Demente e chupado por todos os lados. Casulo e mortalha da saliva. Tudo em mim murchava. Cansaço e gozo. Tudo nela, fartura. Corpo vigoroso. Manto adiposo desposado. Veia latente e a vida exuberante que ela me cuspia em risos. e, ainda assim, fragilidade fortuita. Intimidade celular de minhas essências nela. Rastro de gametas que lhe invadia dentro. 
... e estar dispostos à parte mais retraída do sol (onde a luz, frágil seda cintilante), recobria a intimidade noturna das frestas, das claves... dos corpos. Nossos corpos sempre suspeitos, parados à beira da espera. Desabar o horizonte era o que aprazia e dava um sentido inominado às horas, às tardes das horas, enquanto tudo se reduzia a prestes acontecimentos que, enfim, movimentariam novamente os itinerários musculares da vida: o ônibus quase a chegar, o pão quase a sair, o troco... antes disso, mais nada. Tíbio respirar. Primária função biológica que servia à existência, ao fôlego. No mais, eram ruídos pretéritos lá fora, paisagem imutável. O café esfriou em minha xícara.
Quem espera sempre padece de uma eternidade rarefeita.
Sem grito, nem luz,
adentrei a antiga entranha da casa.
Músculos se contraíram até eu penetrar no cerne amniótico e ali silenciar os tempos, os temperos (temperamentos) da matriarcal: o sebo nas pernas, a pose (des)esperada de quem ouvia de longe notícias do filhos, das mazelas de um vizinho, ou qualquer motivo pra rezar uma conversa e bençãos para aplacar os males. Álibi e cumplicidade. 
Gestei anos para parir essa imagem...
Gerei minha avó.

12 de jan. de 2012

O quarto, a essa altura, era um espaço de exilado silêncio. 
Enquanto não houvesse manhã no gesto, nada despertava a santidade exata das coisas: a xícara era a xícara sem café e sem saliva em sua borda; a torneira talvez pingasse o descuido secular da noite anterior, nem mesmo havia nome no nome da maçã. Sublimação conjunta de nadas, tudo era duração, permanência livre de minha incauta divagação e a mania boba de tirar o descanso do mundo.
Mordi e poderia ser tudo, menos maçã Talvez o velho cachimbo de Magritte...
Na fração de uma hora eternizada, tentei dizer o que havia passado e 
o que via na noite que o dia, exausto, dera à luz.
No entanto, a tarde adormecia continuamente
meus dedos, meus olhos, 
meu tronco curvado ao sabor retorcido de árvores do cerrado.
Dei por mim que toda linguagem era dormente e longe.
Solos se esqueciam tranquilos e noturnos ao meu redor.
Sei que depois da festa, 
estar sozinho é uma das mãos do sonho.

10 de jan. de 2012

Percebi hoje. Durante a chuva toda minha estrutura se diluía junto. Escorria até um reflexo borrado e úmido na calçada. Era uma aquarela lacrimal, cinza. E não por ser triste, mas belo, lembrei também que aquela cena era em nada física. Devaneio pluvial e sonoro da água caída na rua. Talvez o que nos reunisse fosse apenas a sobriedade solitária do quimérico e do vivido. Nada mais. Lembrança embotada de perfeições poéticas. Idílios. Lembrar, não raro, pulsa mais que a vida sentada do cotidiano, tão giratória em cadeiras, dores elevadas. Elevadores. Retalhos do corpo no espelho e no que vejo do corpo: um braço, mãos, pernas, pênis seguindo a extensão vertical de um tronco sem cabeça (por onde também pairam idéias invisíveis). Anatomia dada a fragmentos. Inveja primordial a de não nos vermos em totalidade, mas sermos vistos pelo outro, por quem queremos ser vistos da fisionomia aos pequenos gestos, manias, álibis do encanto... Mesmo essa voz ditada no socrático mundo das idéias me vem em sussurros, códigos, rasgos de um livro distante e incorpóreo. Dizem. Falam na precisão errante dos ventos, na mão de quem alimenta galinhas com punhados mirrados de milho. De grão em grão, etc, etc... Voz em surdina, nos interstícios da invenção. Na escrita. E tudo que compunha a biológica organização, lapidada pelos ciclos evolutivos calham agora numa existência coisificada. Meu corpo era qualquer objeto visto, tocado. Certamente xícara não mais teria esse nome. Chamar-se-ia dedos, mão. Meus sapatos chamar-se-iam meus pés. Minha língua, um livro.  Como em Magritte, tudo em mim tem essa impressão de ser um falso cachimbo usado pelo tempo.

9 de jan. de 2012

O silêncio abusa de minha língua.
Cria estalos, saliva, hálito. Dedos esfregam a testa, a textura de antigas palavras que não sei dizer, nem ouvir. Perambulam penadas, ausentes de qualquer sentido. Lamúrias, rumores, rezas... a voz de minha avó. Quiçá. Acompanham há dias a rotina silenciosa de meu caminho até o trabalho, o costume mórbido que tem as ruas nos períodos de férias: vento, poeira, chuva, automóveis imóveis. Nada diz, mas quer. Arma tocaia e, não demora, eu sei, despertaria morto com a boca aberta, falando ao dia as coisas que dizem o dia. Sabendo pedir ao céu o gosto amaciado das nuvens, o fedor empoeirado dos pombos e nessa hora perceberia que o ar que serviria até para preencher os pulmões, os vazios. Tudo respira se eu bem souber tocar. Os livros abrigam um certo fôlego de vida quando manuseados como um leque. Ventila...

5 de jan. de 2012

Enquanto isso, pássaros maduros reorganizam a lógica caduca da hora. Compromissos com a fome, omissões de gentileza, o andar pela calçada neutro, neutro... Distantes de qualquer pensar, compelem sem cessar à dilatação física dos hemisférios que distinguem terra e céu. Ciência exata a dos pássaros. Mais ágeis que as equações, tontas contemplações de quem abriu o olho e perdeu o chão. Voou junto.

3 de jan. de 2012

Então despertei um evento sutil. Era manhã, e banheiro. Fixei os olhos naquele desentendimento tátil escorrido em minha pele. Estranha forma de vida alojada em meu ombro esquerdo. Rastro luminoso, corpo ligeiramente esférico, cor de minha transparência. A surpresa era uma gota de dia caída do queixo, resquício da manhã deslavada no rosto. Escorri o tempo. A margem ainda era gota, lado sutil onde se liam poros, pêlos, raciocínios. No entanto, uma outra profundidade que eu não via, alcançara um ponto indefinível. Por que de seu caráter estranho, exótico, fui bem capaz de imaginá-la inseto, um sexto sentido apregoado à pele da existência, sonho. Menos gota. E menos ainda por não ser fria. Tinha em seu temperamento físico a mesma temperatura de minha tez. Lembro de alguém (Bachelard, Duchamp, Manoel de Barros?) ter dito que quando enxergamos de fato um objeto, o vemos pra além de seu nome, de sua função e o refletimos numa espécie de espelho nulo, sem eu, nem mundo. Princípio de linguagem... quiçá. Despertei a manhã? Despertei o amanhã? Talvez fosse lágrima. Aquela gotícula de água, de inseto, de vida, era minha irmã.